« (…)Pequena política significa também a funesta confusão ideológica, essencialmente democrática,
segundo Nietzsche, entre felicidade, por um lado, e segurança, comodidade, ausência de dor, por outro lado. Essa identificação implica, para ele, em tomar à inglesa o ideal bem supremo, transformá-lo em wellfare, conforto e bem-estar; significa apequenar a política, amesquinhar a figura ou o tipo-homem que se pretende formar por intermédio da política e da cultura; grande política é a política cultural que se inspira num outro ideal de homem, numa outra figura que não o homem das “ideias modernas”, do utilitarismo com a sua felicidade de mercearia e dos direitos iguais.
Esse homem, Nietzsche caricatura-o na figura do “último homem”, o homem do rebanho e da pacífica felicidade das verdes pastagens. Esse tipo-homem é, para Nietzsche, a verdadeira meta da pequena política; ele é o “último homem” porque se auto-interpreta como o fim da história, como o telos até então oculto e ora manifestado do curso do mundo, como se toda a história universal não fosse senão o prelúdio e a gestação do advento da sua felicidade, enfim assegurada num pacífico reinado universal da razão, de onde se pode, por fim, fazer desaparecer toda desigualdade, injustiça e sofrimento; fisiológicamente decadente, esse “último homem” é, sobretudo, impotente para sofrer e suportar o sofrimento, daí que a banalidade dos prazeres e confortos moderados constitua o seu supremo ideal de felicidade:
“Ai! Chega o tempo do homem mais desprezível, que não pode mais desprezar a si mesmo. Olhai! Eu vos mostro o último homem. Que é amor? Que é criação? Que é anelo? Que é estrela – assim pergunta o último homem, e pestaneja. A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe é indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais tempo vive. ‘Nós inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, e pestanejam. Abandonaram as regiões onde é duro viver: pois a gente precisa de calor. A gente ama inclusive o vizinho e se esfrega nele, pois a gente precisa de calor. Adoecer e desconfiar, eles consideram perigoso: a gente caminha com cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras e com homens! Um pouco de veneno de vez em quando: isso produz sonhos agradáveis. E muito veneno no final, para ter uma morte agradável. A gente continua trabalhando, pois o trabalho é um entretenimento. Mas evitamos que o entretenimento canse. Já não nos tornamos nem pobres nem ricos: as duas coisas são demasiado molestas. Quem ainda quer governar? Quem ainda obedecer? Ambas as coisas são demasiado molestas.”
Essa felicidade amesquinhada, confundida com segurança e bem-estar, é expressão de uma vida reduzida ao mínimo possível de intensidade – “a terra tornou-se pequena então” –, de onde toda a tensão e contraste foram suprimidos, para não restar senão o tépido aconchego e o monótono atrito dos rebanhos, a igualdade transformada em igualitarismo da uniformidade, onde não subsiste qualquer diferença ou distância – “quem ainda quer governar? quem ainda obedecer?” –. Como a intensidade, tensão e contraste – juntamente com o sofrimento e com a capacidade para suporta-lo tragicamente – são condições incontornáveis de toda grandeza, de toda elevação do tipo-homem, a felicidade inventada pelo último homem acoberta a hipocrisia de uma vontade de poder inconsciente de si mesma, ou seja, a inocente tirania da uniformidade, o despotismo dos “mais estúpidos e medíocres”, que sufoca e anestesia a singularidade encarnada em toda verdadeira e grande individualidade. “Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais: quem sente de outra maneira, vai voluntariamente para o hospício. ‘Outrora todo mundo desvairava’, dizem os mais subtis e pestanejam. Hoje somos inteligentes e sabemos o que ocorreu – assim não tem fim o gracejar. A gente ainda discute, mas logo se reconcilia – senão se estraga o estômago. Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho para a noite, mas honramos a saúde. ‘Nós inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens e pestanejam.”
A figura do “último homem” simboliza, pois, o alvo principal da crítica nietzscheana da modernidade política: a bagatelização do tipo-homem embutida no igualitarismo uniformizante; um outro conceito polémico para o mesmo fenómeno, Nietzsche fixou-o no termo: mediocrização (Mittelmässigkeit), com o qual fustiga a prudência mercantil dessa miúda felicidade dos pequenos prazeres iguais para todos, característica da moderna sociedade civil-burguesa; para ele, é nela que desemboca, finalmente, a ideologia da liberdade, igualdade e fraternidade universais. Além desse efeito nivelador, Nietzsche identifica, na hegemonia das “ideias modernas” ainda um outro perigo iminente: com o apagamento de todas as diferenças e a dissolução de toda autoridade legítima, prepara-se involuntariamente o caminho para a barbárie e a tirania.(…)»
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